Como o ensino domiciliar afeta a educação inclusiva

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Como o ensino domiciliar afeta a educação inclusiva

Luiza Corrêa, do Instituto Rodrigo Mendes, explica como os direitos dos(das) estudantes com deficiência podem estar ameaçados com a possível regulamentação do homeschooling

Por Stephanie Kim Abe

O debate sobre a regulamentação do ensino domiciliar – ou homeschooling – segue a todo vapor. A tramitação do PL 3.179/12 e seus apensados aguarda a criação da comissão especial, sob relatoria da deputada Luísa Canziani. A Comissão de Constituição e Justiça aprovou no mês passado o PL 3.262/19, que altera o Código Penal, para que a educação domiciliar não seja considerada “crime de abandono intelectual”, como ocorre atualmente.

A Câmara dos Deputados tem promovido debates e audiências públicas para tratar sobre o assunto. No dia 14 de maio, o tema foi “Educação Inclusiva sob a ótica do Homeschooling”:

Educação Inclusiva sob a ótica do Homeschooling

Entidades relacionadas ao direito das pessoas com deficiência têm se posicionado contra o homeschooling. Nas redes sociais, elas têm participado da mobilização contra a proposta, por meio de vídeo-depoimentos – como o de Mariana Rosa, do Coletivo Feminista Helen Keler, e de Laís Lopes, da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva, explicando por que o ensino domiciliar é um retrocesso. Confira na página do Coletivo Feminista Helen Keller no Facebook.

Em 22 de junho, a Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In), composta por 16 organizações da sociedade civil, divulgou um posicionamento em que alerta aos perigos dessa regulamentação para as políticas de educação inclusiva.

No texto, as organizações alertam para a fragilidade dessa política, que ainda é recente, para o agravamento da desigualdade educacional e a ampliação do abandono e evasão escolar e para as perdas de convivência que os(as) estudantes em situação de homeschooling sofrem:

A interação entre pares é um elemento insubstituível e essencial para a aprendizagem. Além disso, a convivência com a diferença, com a singularidade humana, é a premissa para educar cidadãos mais empáticos e capazes de conviver em uma democracia. Além disso, estudos recentes mostram que a educação inclusiva é positiva pedagogicamente para estudantes com e sem deficiência. Em resumo, a convivência em comunidade escolar é o pilar necessário para o desenvolvimento integral do ser humano, sem o qual os objetivos da educação brasileira não se cumprem”.

Rede-In, 2021

Homeschooling não é ensino remoto

Um dos principais equívocos que tem confundido as pessoas nesse debate é associar o ensino domiciliar ao ensino remoto que tem ocorrido durante a pandemia. Com as escolas fechadas, as aulas passaram a ser realizadas em casa, com a ajuda de pais ou outros(as) familiares, por meio de atividades impressas coletadas nas unidades escolares ou via internet, televisão, rádio.

Apesar de os(as) estudantes estarem em casa e, em alguns casos, terem essa mediação dos pais ou cuidadores(as) na aprendizagem, o ensino remoto não configura ensino domiciliar. Luiza Corrêa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, explica:

Luiza Corrêa advogada especialista em educação inclusiva
Foto: Divulgação/IRM

A educação domiciliar (ou homeschooling) não é mediada por uma instituição de ensino, que é especializada em programar as atividades pedagógicas e fazer avaliações, tem um currículo próprio e profissionais capacitados. No ensino remoto que temos agora, são as escolas e os(as) educadores(as) que planejam o conteúdo e fazem a aula, e os pais mediam a aprendizagem. No homeschooling, a família é responsável por todo o ensino: pensar um currículo, entender o conteúdo, programar e realizar a atividade, e avaliar o aprendizado.”

Luiza Corrêa

Além disso, os(as) estudantes que hoje estão em situação de aulas remotas têm a oportunidade de convívio com seus(suas) colegas de classe, ainda que de forma virtual, por aplicativos de mensagem. Eles(as) fazem parte de um grupo e têm a oportunidade de interagir tanto com os(as) professores(as) quanto com colegas da mesma idade. No ensino domiciliar, os(as) alunos(as) não frequentam a escola e, portanto, não têm garantida essa convivência.

Vale lembrar que nem ensino remoto nem o ensino domiciliar são considerados Educação a Distância (EaD).

Leia mais sobre os riscos da educação domiciliar

O Portal Cenpec conversou com Luiza Corrêa para explicar melhor como a regulamentação do ensino domiciliar pode significar retrocessos na educação inclusiva e afetar principalmente o seu público-alvo: s(as) estudantes com deficiência. 

Esse período de isolamento social deveria servir para enxergarmos o quanto é retirado de uma criança quando ela fica em casa. Deveríamos ter essa aprendizagem coletiva que ela precisa de um espaço de convivência, de proteção e de aprendizagem, que é a escola. É um contrassenso, em termos de política pública, dar prioridade a essa pauta do ensino domiciliar nesse momento.”

Luiza Corrêa

Confira a seguir a entrevista completa:


Portal Cenpec Educação: Quais os principais avanços em políticas de educação inclusiva nos últimos anos?

Luiza Corrêa: Em 2006, assinamos a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que, em 2009, foi ratificado pelo Brasil com status de Emenda Constitucional. Ou seja, ela tem o mesmo valor, a mesma hierarquia que a Constituição, e é o principal marco da educação inclusiva.

O texto da Convenção deixa bem claro que o sistema de ensino deve ser inclusivo e que os Estados que ratificaram o documento têm que empreender esforços e investimentos para a inclusão de todos(as) os(as) estudantes com deficiência no sistema regular de ensino.

Além disso, em 2008, o Brasil instituiu a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, que foi bem significativa. Esse foi também o primeiro ano em que os números de matrículas na escola comum superaram o número de matrículas nas escolas especiais para os(as) estudantes que são o público-alvo da educação especial.

Desde então, esses números só vêm crescendo. Nós chegamos ao ápice em 2020, com mais de 90% dos(as) estudantes com deficiência matriculados(as) nas escolas comuns. Assim, temos conseguindo melhorar os números da inclusão paulatinamente e também investir na melhoria da qualidade, como formação de professores e maior acessibilidade nas escolas. Isso vem sendo feito aos pouquinhos.

Portal Cenpec Educação: Hoje em dia, quais as opções que os pais de crianças com deficiências têm, em termos de escolarização dos(das) filhos(as)?

Luiza Corrêa: Levando em consideração os marcos descritos anteriormente, a legislação brasileira institui que os familiares matriculem as crianças em escolas comuns, ou seja, na rede regular de ensino.

Na prática, ainda existem escolas especiais, porque vivemos um período de transição. A opção dos pais é de qual rede o(a) estudante vai cursar (particular ou pública) e qual escola. Mas não é uma escolha legítima matricular as crianças em escolas especiais ou deixá-las em casa.

Portal Cenpec Educação: Por que a regulamentação do ensino domiciliar deve prejudicar mais os(as) estudantes com deficiência?

Luiza Corrêa: A história da conquista dos direitos das pessoas com deficiência estudarem nas escolas comuns é muito recente. Como eu disse, foi só em 2008 que tivemos o aumento no número de matrículas nas unidades escolares regulares.

Historicamente, essas pessoas foram excluídas e institucionalizadas. Elas passavam a vida inteira numa instituição que muitas vezes nem ensino tinha, oferecia mais terapias. Ou seja, é muito recente o entendimento das pessoas com deficiência como sujeitos de direitos, e que têm direito a estudar em uma escola regular e que tem direito à aprendizagem. Trata-se, portanto, de uma conquista muito frágil.

Apesar desses avanços, a sociedade e a estrutura social ainda é capacitista – que é o preconceito voltado às pessoas com deficiência. Assim como o racismo é para raça, o machismo para gênero.

A nossa hipótese é que a regulamentação do homeschooling – que pode vir com boas intenções, no intuito de proteger as crianças – muito provavelmente volte a isolar os(as) estudantes com deficiência em suas casas, principalmente considerando esse manto capacitista em que vivemos. É o que aconteceu mais frequentemente na história do mundo.

A falsa ideia de proteger os(as) filhos(as) pode fazer com que muitas famílias façam a opção de deixá-los(as) em casa, retirando deles direito de conviver com toda a comunidade, de estar com pares da mesma idade, de ter professores(as) preparados(as) para ensinar (inclusive especializados/as no atendimento de pessoas com deficiência), de frequentar a escola. É por isso que o homeschooling afeta de maneira desproporcional estudantes da educação especial, trazendo a ameaça de um retorno ao modelo em que as crianças eram deixadas em casa e excluídas da convivência social.

Portal Cenpec Educação: O substitutivo ao PL 3.179/12 e seus apensados, apresentado pela relatora deputada Luisa Canziani (PTB-PR), pretende regulamentar o ensino domiciliar trazendo algumas garantias, como que um dos responsáveis tenha ensino superior completo, que sigam os conteúdos curriculares dispostos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e que seja garantida a convivência familiar e comunitária. Isso não seria suficiente para garantir o direito à educação? 

Luiza Corrêa: Não, de maneira alguma. Primeiro, porque a escola não é só um espaço de convivência. Ela é um espaço melhor preparado para cumprir o currículo pedagógico, a BNCC. A escola é melhor, é o lugar onde temos professores preparados para ensinar e onde o aluno aprende melhor na interação com e no estímulo dos colegas. A criança tem o direito de ocupar esse espaço da escola, que é onde se garante o direito à educação, à dignidade, à igualdade.

Apesar do texto da deputada Canziani apresentar todas essas condições regulamentares, o Brasil não tem condições práticas e materiais de fiscalizá-las. Então, sendo pragmática, é bem improvável que tudo o que está descrito ali seja cumprido. Nós não temos condições nem de fiscalizar as escolas, imagine as famílias.

Fiscalizar famílias em homeschooling também requer alocação de recursos – e essa seria uma escolha ruim, em termos de políticas públicas. Esse dinheiro poderia ser investido em melhoria da inclusão, da acessibilidade, da formação docente.

Por último, vale lembrar que a família é importantíssima na educação dos filhos. Ela é central na vida das crianças, mas ela não pode ser uma instituição total. Ela não tem arbitrariedade de definir ou abrir mão dos direitos fundamentais dessa criança ou adolescente. Há um limite para esse poder dos pais.

A Constituição prevê que é função do Estado, da família e da sociedade cuidar da criança e do(da) adolescente, e que elas têm absoluta prioridade. Por exemplo, eu posso escolher em qual escola meu(minha) filho(a) vai estudar, mas não posso escolher não matriculá-lo em uma escola. Dizer que a criança terá uma convivência comunitária não é igual a garantir que ela tenha direito à educação na escola comum, que é o que está posto na Constituição.

No caso da criança com deficiência, o Estado tem a obrigação de garantir que ela vá para uma escola comum. Como esse direito foi conquistado a duras penas e muito recentemente, ele é ainda muito sensível, frágil. Flexibilizar isso agora pode dar centralidade ao papel do(da) cuidador(a), que pode não confiar na capacidade daquela criança de aprender, inclusive por causa de uma frustração pessoal, de ter um(a) filho(a) com deficiência que não aprende da mesma forma e no mesmo tempo que o(a) irmão(ã) ou o(a) vizinho(a).

É na escola que percebemos a possibilidade de enxergar que todos(as) os(as) estudantes são diferentes, que cada um tem o seu tempo, a sua dificuldade de aprendizagem e a sua potência. O professor tem condições de criar estratégias para todo mundo aprender.

Portal Cenpec Educação: Sabemos que a educação inclusiva ainda está caminhando e que há muitas escolas em que os(as) estudantes com deficiência não tem garantido o seu direito à educação. Por essa realidade difícil, muitos pais preferem deixar as crianças em escolas especializadas ou temem coloca-las na escola. O que é preciso fazer para avançarmos na política de educação inclusiva?

Luiza Corrêa: Em termos de legislação, o Brasil é um dos países que tem uma das melhores políticas de educação inclusiva no mundo. É, inclusive, um país que está na dianteira no número de matrículas em escolas inclusivas e que serve de modelo a ser seguido para outros países.

O que precisamos fazer é cumprir o que está na legislação, porque a regulamentação é muito adequada. Como exemplo, temos a Política Nacional da Educação na Perspectiva Inclusiva, que já citei acima, a Lei Brasileira de Inclusão, a própria Convenção etc. Estamos, infelizmente, em um momento de luta para evitar que essa política já constituída sofra retrocessos e revezes – como o homeschooling, a educação bilíngue de surdos como modalidade segregada etc.

Na prática, há sim muitas diferenças nas redes de ensino brasileiras, dos diferentes municípios e estados, e há investimentos que precisam ser feitos para aprimorar ainda mais esse caminho da inclusão.

Formar professores(as) nessa perspectiva inclusiva é um deles. Ainda é muito comum que os professores tenham essa perspectiva da educação especial, que segregava por tipo de deficiência e que olhava muito mais para o impedimento do que para as barreiras que estão diante daquele estudante. Esses(as) profissionais (professor/a regente, coordenador/a pedagógico/a) precisam ser formados em Desenho Universal para Aprendizagem (DUA), aprender e saber fazer inclusão e planejar suas atividades pedagógicas considerando todos(as) os(as) alunos(as), com e sem deficiência.

Eles(as) precisam trabalhar em colaboração com o(a) professor(a) de Atendimento Educacional Especializado (AEE), de forma que o estudante tenha dois momentos que sejam complementares e se comuniquem, e não apartados um do outro. O AEE deve ser um apoio à sala de aula.

Além disso, também é super relevante investir na infraestrutura da escola, garantindo melhoria da sala de recursos multifuncionais e na acessibilidade nas escolas (rampa, elevador, acessibilidade comunicacional etc). Também é preciso investir nos profissionais de apoio, que também são importantes para que a gente possa garantir a permanência dos(as) estudantes com deficiência na escola.

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