32 anos do ECA: combater as violências contra crianças e adolescentes é urgente
Com o aumento de casos de violência contra crianças e adolescentes, traçar estratégias proteger esses grupos se faz ainda mais importante; saiba mais
Por Stephanie Kim Abe
Hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), completa 32 anos. Mas, infelizmente, não há muito o que comemorar quando o assunto é a garantia e a proteção dos direitos das crianças e adolescentes brasileiras. Certo é que é preciso trabalhar em conjunto para reverter esse cenário de crescimento da violência.
Os dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a violência contra crianças e adolescentes aumentou de 2020 para 2021. Considerando apenas os boletins de ocorrência gerados sobre violências letais e não letais contra esse público em 12 unidades da federação, o Brasil registrou cerca de 137 casos de violência contra crianças e adolescentes por dia no primeiro semestre de 2021.
Estamos falando de crianças e adolescentes de até 17 anos que sofreram maus tratos, lesão corporal por violência doméstica, exploração sexual, estupro e morte violentas intencionais (homicídios dolosos, feminicídios, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial). Todas essas violências (exceto as letais) apresentaram aumento em relação ao mesmo período de 2020 – totalizando cerca de 24 mil registros apenas no primeiro semestre de 2021.
Diante desse cenário crítico, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública recomenda a criação de delegacias especializadas de proteção à criança e ao adolescente e de um sistema unificado com dados de segurança pública referentes a esses grupos.
Para Letícia Araújo Moreira da Silva, coordenadora de projetos do Cenpec, a inexistência desse último item é um obstáculo para termos o real cenário das violências e se pensar políticas públicas:
O Brasil padece de fontes confiáveis e isso é algo muito complicado. Se você vai fazer uma pesquisa sobre violência contra criança e adolescente, você pode acessar as fontes policiais, os dados que são registrados pelas médicas e enfermeiras do SUS, ou mesmos os casos reportados pela assistência social e pelas escolas (que têm menos frequência). Não há uma base única – o que significa, muito provavelmente, que estamos diante de muita subnotificação.”
Letícia Araújo Moreira da Silva
Quem são as vítimas dessa violência
O estupro é o crime que faz mais vítimas entre crianças e adolescentes: compõem 56% dos casos analisados (cerca de 73 mil) e atingem mais a faixa etária entre 10 e 14 anos. Entre as vítimas, 85% são meninas.
No caso das mortes por violências intencionais, são as(os) adolescentes os mais atingidos (82% das vítimas), sendo a maioria meninos (86%) e pessoas negras (78%).
Para Letícia, os dados refletem um cenário de racismo e desigualdade de gênero que se reflete em toda a sociedade brasileira – e que precisa ser observado com mais atenção e intencionalidade:
É preciso identificar quem são essas populações mais vulneráveis. No caso da violência contra criança e adolescente, são os adolescentes negros as maiores vítimas de homicídios. Na pandemia, vimos que foram as meninas que deixaram de voltar para a escola, que ficaram em casa cuidando dos irmãos. São as pessoas pretas, pardas, indígenas, com deficiência que têm menos acesso a política pública, estão fora da escola, são mais vitimizadas e excluídas.”
Letícia Araújo Moreira da Silva
Como essas violências refletem na escola
“A escola não é uma ilha”, lembra Letícia Silva. E isso significa que ela não está isolada e imune às consequências que as violências que acontecem fora das instituições de ensino geram nas crianças e adolescentes. Muito pelo contrário.
Tem crescido, por exemplo, os relatos de casos de violência, ansiedade, apatia e outros transtornos entre estudantes no retorno às aulas. Para especialistas, os episódios são consequências da quebra de vínculo com a escola, em decorrência dos quase dois anos de ensino remoto, e do estresse do isolamento social devido à pandemia.
“A escola não costuma lidar com questões como trabalho infantil – que aumentou – e violência urbana. Ela não tem um trabalho forte de pensar a prevenção, e olha a violência como um problema da comunidade, como se ela não fizesse parte desse território. Mas essa violência que as crianças e adolescentes sofrem fora da escola diz respeito à instituição escolar e reflete em como ela é estruturada. É preciso pensar em como a escola pode ajudar a proteger suas(seus) estudantes”, diz Letícia.
Para a coordenadora de projetos, é necessário ainda que a escola também olhe para os marcadores sociais, como gênero, sexualidade e raça, para formular ações e atuar com mais precisão na garantia e na proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes.
A criança com deficiência, por exemplo, é muitas vezes invisível para as organizações ou escolas que atuam no território. Mas quando trabalhamos com monitoramento e avaliação de dados, essa população que geralmente é excluída aparece. Se a escola ou a organização não reflete sobre aqueles que estão à margem, elas nunca vão melhorar os seus índices e resultados. É preciso essa mudança no olhar para a construção de ações e programas mais equitativos e inclusivos, que não sejam apenas para inglês ver.”
Letícia Araújo Moreira da Silva
A escola não está sozinha
A escola faz parte do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), criado com o ECA e que articula intersetorialmente diferentes instâncias públicas governamentais e da sociedade civil para criar uma rede de proteção a esse público.
A instituição escolar costuma ser considerada central nesse sistema, por atuar, muitas vezes, como porta de entrada para que as crianças e os adolescentes em situação de violação de direitos possam acessar outros serviços dessa rede. É nela que são identificados casos de violência doméstica ou maus-tratos, ou que estudantes em situação de vulnerabilidade conseguem garantir alimentação diária, por meio da merenda escolar.
Por fazer parte de um sistema, a escola não precisa e não deve atuar sozinha. E é por isso que trabalhar de forma intersetorial é tão importante.
Em comemoração aos 30 anos do ECA em 2020, o Portal Cenpec publicou uma série de reportagens que exploram diversos aspectos dessa importante legislação brasileira.
Por que o Estatuto é tão importante e por que ele é tão inovador; como ele articula as diferentes instâncias e órgãos em uma rede de proteção; quais os direitos garantidos e os serviços disponibilizados às crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade e risco; o que é preciso avançar para que a lei seja de fato cumprida são algumas das perguntas abordadas nas seis reportagens do Especial Cenpec Explica: 30 anos do ECA:
No trabalho que realiza coordenando o Programa Itaú Social UNICEF no Cenpec, Letícia tem visto como o trabalho de parceria entre escolas e organizações da sociedade civil (OSCs) se intensificou em algumas localidades, fruto não de uma política pública de incentivo, mas do próprio olhar das OSCs do agravamento da situação das crianças e adolescentes atendidos por causa da pandemia.
“A evasão escolar e a defasagem de aprendizagem são algumas das consequências do ensino remoto, que se refletem tanto nas escolas quanto no trabalho das OSCs. Tanto que há organizações que têm trabalhado com questões de acompanhamento pedagógico de português e matemática, porque identificaram essa demanda da comunidade. Elas têm sentido as escolas mais abertas para pensar ações em conjunto, porque também estão mais sobrecarregadas e não estão dando conta de atender todas as mazelas que têm atingido crianças e adolescentes”, explica Letícia.
Mas a parceria das OSCs não deve ser a única forma de trabalhar com os outros órgãos que fazem parte do sistema de proteção das crianças e adolescentes. É preciso fortalecer o sistema como um todo, com políticas públicas nas mais diversas áreas, como saúde, assistência social e cultura – algo que tem estado em falta no governo atual.
A articulação entre OSC, escola e outras áreas é fundamental porque estamos em um cenário de agravamento da pobreza, da situação de fome, do desemprego. Para que a criança volte a estudar, é preciso que haja política de assistência social, que dê apoio para a família – assim não precisa trabalhar ou passar fome por falta de comida em casa, por exemplo. Infelizmente, tivemos um grande retrocesso nessas políticas públicas sociais nos últimos anos, portanto, precisamos retomá-las o quanto antes.”
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