#CasaLibras: e-book, contações de histórias e muito mais
Projeto de pesquisa, ensino e extensão da UFSCAR analisa práticas bilíngues em escolas inclusivas e produz materiais para ajudar famílias e educadoras(es) no ensino e aprendizagem da língua de sinais
Por Stephanie Kim Abe
Quando a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil, em 2020, a professora doutora Vanessa Regina de Oliveira Martins estava, há dois anos, trabalhando com escolas públicas do interior de São Paulo, observando seus programas de educação bilíngue de pessoas surdas como parte de uma pesquisa.
Com a imposição do isolamento social, ela ficou bastante preocupada em relação a como essas(es) estudantes que estavam no processo de aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais (Libras) iriam continuar o seu desenvolvimento dentro de casa — principalmente considerando que muitos pais e familiares não sabem a Libras.
Diante desse cenário, ela começou a gravar vídeos voltados a esse público com a ajuda de outro colega da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), onde é professora do Programa de Pós-graduação em Educação Especial do Departamento de Psicologia (Dpsi/UFSCar) e coordena o Grupo de Pesquisa em Educação de Surdos, Subjetividades e Diferenças. Como explica a docente:
“Nesse primeiro momento, pensamos em produzir alguns vídeos com contações de histórias literárias e também explicando o que estava acontecendo com relação à pandemia, como o motivo pelo qual as crianças estavam isoladas e não podiam ir à escola, porque, como os pais muitas vezes não tem conhecimento da língua de sinais, eles não conseguem conversar com suas(seus) filhas(os).”
Vanessa Regina de Oliveira Martins
Foi daí que surgiu o projeto #CasaLibras — que hoje soma, entre as suas produções, mais de 40 vídeos em Libras, materiais didáticos, informes e orientações; conta com a parceria de diversas(os) docentes, técnicas(os) audiovisuais, tradutoras(es) e intérpretes de Libras e estudantes de graduação, e se tornou um programa de pesquisa, ensino e extensão na UFSCar.
As produções foram inicialmente pensadas para as famílias, mas conforme as redes começaram a se organizar para ofertar o ensino remoto, Vanessa começou a receber solicitações para que seus vídeos pudessem ser incluídos nos materiais para as(os) educadoras(es):
Recebemos solicitações de liberação do material não só das redes que já estavam vinculadas ao meu projeto, mas de outras prefeituras — principalmente do Norte e do Nordeste, que são regiões do Brasil onde há menos produções e assessorias voltadas à educação de pessoas surdas. Elas não tinham material para poder mediar essa educação e, com essa demanda, nós construímos melhor um roteiro e passamos a angariar mais pessoas para nos ajudar nas produções.”
Vanessa Regina de Oliveira Martins
A falta de material didático voltado para esse público já tinha sido constatada pela pesquisadora durante o seu trabalho de observação das escolas, assim como a quantidade de crianças surdas matriculadas que estavam com aquisição tardia de linguagem. Isso ocorre porque muitasfamílias não têm acesso ou conhecimento das Libras.
“Essas crianças passam a aprender a língua de sinais apenas quando têm contato com professores do programa bilíngue nas escolas. Essa aquisição tardia de linguagem acarreta várias questões para as crianças, como defasagem de conhecimento, pouca interatividade com os seus pais e, consequentemente, pouco conhecimento de mundo”, explica Vanessa.
Por isso, os vídeos produzidos pelo #CasaLibras têm tradução em português, para que as famílias também possam entender o que está sendo dito e assistir junto às crianças.
Para Vanessa, há muito o que avançar na oferta e na qualidade da educação bilíngue. Desde agosto do ano passado, com a sanção da Lei 14.191/21 pelo presidente Jair Bolsonaro, a educação bilíngue — que considera a Libras a primeira língua e o português a segunda — se tornou uma modalidade de ensino, que deve ser ofertada a partir da educação infantil.
A formação de educadoras(es) é uma das questões centrais que devem ser olhadas, já que elas(es) também não tem a formação bilíngue:
Quando as escolas ofertam essa proposta bilíngue, os educadores muitas vezes têm o conhecimento das Libras porque buscaram uma especialização ou uma formação continuada, mas não conseguem, por exemplo, pensar em como trabalhar com uma criança que não tem a língua portuguesa como língua materna ou que entra na escola com aquisição tardia. Além disso, faltam instrumentos formativos e avaliativos dessas crianças em língua de sinais.”
A publicação é composta por artigos das(os) organizadoras(es) e de pesquisadoras(es) convidadas(os), que contam a proposta do Programa, explicam as bases teóricas que consolidam a sua compreensão acerca de práticas de ensino para a diferença e relatam ações práticas de produções escolares com crianças surdas. Também há relatos de membros da equipe do Programa, que hoje conta com 11 pessoas de diferentes áreas.
“Isso mostra que o trabalho com crianças surdas não engloba apenas a pedagogia, mas outras licenciaturas e cursos, como Ciência da Computação e Imagem e Som, porque a educação de surdos demanda tecnologia e trabalho interdisciplinar”, diz Vanessa.
Apesar dos muitos desafios que as escolas devem enfrentar para garantir programas bilíngues, a pesquisadora Vanessa chama atenção para a importância também de um olhar intersetorial para as crianças surdas, incluindo principalmente a Saúde:
“O diagnóstico da surdez é muito tardio e tampouco há orientações da área médica para que, quando diagnosticadas, as crianças tenham acesso a políticas e ações de ensino a Libras. Há muita expectativa, tanto dos pais quanto da sociedade, de que elas desenvolvam a linguagem oral ou que possam fazer uma cirurgia de intervenção com implante coclear — sendo que a porcentagem de sucesso nesses dois casos têm sido baixa.”
Por causa dessa expectativa e da falta de conhecimento dos familiares, a docente acredita que a escola tem o papel fundamental de estreitar relações com os pais das crianças surdas e com deficiência auditiva, para acolhê-las e garantir interações significativas:
“A escola que está preocupada com o desenvolvimento da língua de sinais de seus estudantes vai produzir projetos que abram espaço para que as famílias também aprendam a Libras e possam compartilhar as suas dificuldades e trocar experiências nesse processo de educação bilíngue.”
Vanessa Regina de Oliveira Martins
Ela defende o que chama de “educação plural linguisticamente”, que entende que, assim como o português tem suas variações regionais e forma culta, a Libras também tem diferentes usos — e que todos eles precisam ser entendidos e acolhidos na escola.
“Várias línguas percorrem a escola: o português, o espanhol, o inglês… e todas elas têm suas variações. A Libras também. Por isso, a escola tem que entender a história dessas crianças, e perceber que há aquelas que vêm com gestos caseiros, outras com uma apropriação mais bacana. Ela [a escola] precisa olhar para as realidades de uso da língua de sinais e como ela constitui esses sujeitos na sua vida social fora da escola. Esse olhar é potente para pensar a produção do ensino, não no sentido de trabalhar com uma língua padrão, mas a partir das diferenças”, diz Vanessa.
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