Alfabetização e letramento: em busca de uma política nacional articulada
Quais são os caminhos trilhados nos últimos anos e o que é preciso retomar para garantir que todas(os) as(os) estudantes sejam plenamente alfabetizadas(os) na idade certa
Por Stephanie Kim Abe
Sai governo, entra governo, e a alfabetização é um dos temas definidos como prioritários para a gestão que chega ao poder. Não é à toa: sabemos que garantir que as(os) estudantes saibam ler e escrever na idade certa é um passo fundamental e básico no processo de aprendizagem, e que quando isso não acontece, toda a trajetória escolar é impactada negativamente.
Não é de se surpreender, portanto, que o presidente Lula tenha declarado a alfabetização uma das prioridades do seu governo. Mas não é só de declarações que se faz uma política: é preciso pensar quais são as concepções nas quais ela se baseia, como ela será estruturada, que resultados almeja atingir, que apoio ela fornecerá às escolas na ponta.
Para Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec:
Uma política nacional de alfabetização deve integrar os processos de alfabetização e letramento, e levar em consideração a grande diversidade e complexidade de realidades e contextos que existem no Brasil. Isso significa que as soluções não serão únicas. Elas precisarão dialogar com as diferentes realidades e as necessidades locais“.
O alerta é importante, já que alguns estados brasileiros têm realizado experiências consideradas bem-sucedidas em termos de alfabetização, como o Ceará e Pernambuco. Mas simplesmente transplantar uma política de maneira igual para outros territórios não é uma solução:
Confira abaixo a entrevista completa com Anna Helena, que comenta sobre os caminhos percorridos até aqui na última gestão e os desafios que o governo Lula enfrenta para garantir que todas as crianças saibam ler e escrever na idade certa.
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Portal Cenpec: O governo de Jair Bolsonaro tinha colocado a alfabetização como uma das prioridades de sua gestão. Intitulada Política Nacional de Alfabetização (PNA), ela recebeu bastante críticas – inclusive algumas publicadas aqui no Portal Cenpec. Como você avalia a PNA e a forma como a gestão anterior priorizou de fato (ou não) a alfabetização?
Anna Helena Altenfelder: De fato, encontramos algumas problemáticas na maneira como a gestão anterior abordou a questão.
Embora tenha instituído oficialmente a Política Nacional de Alfabetização (PNA), se considerarmos a política como um conjunto de diretrizes, estratégias, ações e incentivos articulados, que busca olhar para implementação e formação, nós não podemos dizer que houve uma política. Ela não respondeu ao que se espera de uma política, por carecer dessa articulação que realmente atacasse o todo e as etapas necessárias para a sua devida implementação.
A PNA foi muito mais uma metodologia de alfabetização apontada pra ser usada pelos municípios, que tampouco contemplou todas as estratégias de implementação e de formação das(os) profissionais da rede. Ela estava mais ligada a materiais ou algumas estratégias que também não consideravam o processo de alfabetização como um todo.
Portal Cenpec: Por que ela não considerava o processo de alfabetização como um todo?
Anna Helena: A PNA estava apoiada em concepções de alfabetização que vão na contramão de todas as produções teóricas e práticas desenvolvidas no Brasil nos últimos anos.
Quando nós consideramos a questão da alfabetizacão, temos que pensar para além da aquisição do código alfabético – que é o conhecimento que as crianças têm de juntar as letras em sílabas, as sílabas em palavras, e de atribuírem valor sonoro, convencional para as letras. O que chamamos de consciência fonológica, fonêmica, que são importantes para as crianças se apropriarem do código alfabético ao longo da alfabetização.
Porém, nós sabemos que a alfabetização não pode se restringir a isso. Também faz parte do processo o conhecimento sobre os usos e as funções sociais da leitura e da escrita – o que é chamado de letramento.
Um dos grandes ensinamentos e contribuições da professora Magda Soares (1932 – 2023) foi que o letramento não é uma consequência da alfabetização, mas sim uma condição. Então, se queremos que todas as crianças estejam alfabetizadas ao final do terceiro ano – tal qual está posto na meta 1 do Plano Nacional de Educação (Lei 13.004/2014) e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – é importante que sejam trabalhados tanto os aspectos do letramento como da alfabetização. Na verdade, eles não deveriam nem ser considerados processos opostos; são complementares, integrais.
Por isso é preciso trabalhar a alfabetização de maneira integrada. E é exatamente isso que a metodologia proposta pela PNA não fazia. Ela só olhava para os aspectos da alfabetização e não para o letramento. Por isso as críticas que essa política recebeu.
Nesse sentido, a gestão atual do MEC de Camilo Santana acerta ao desmobilizar a Secretaria de Alfabetização (Sealf), criada durante o governo Bolsonaro, e pensar na questão da alfabetização de uma outra forma, mais afinada com o que pesquisas nacionais e internacionais têm apontado como efetivas para o processo de alfabetização.
Quando consideramos crianças que vivem num ambiente cultural pouco letrado, porque as famílias não tiveram oportunidade de estudar ou porque não têm acesso a eventos de letramento, a escola passa a cumprir ainda mais o seu papel e trabalhar na diminuição das desigualdades educacionais.
Portal Cenpec: Por que o impacto da pandemia foi mais negativo sobre os estudantes em processo de alfabetização?
Anna Helena: Porque as crianças em alfabetização precisam da interação para o seu aprendizado. A alfabetização é interacional. Isso significa que é preciso que haja um professor ou uma professora que conduza esse processo, olhando para as dificuldades desses estudantes e fazendo novas propostas.
Além disso, as crianças dessa faixa etária têm poucas condições de participar de atividades on-line por muito tempo. Ou seja, não deu para exigir delas a continuidade dos estudos de forma on-line apenas, tal qual ocorreu com estudantes do ensino médio ou até mesmo da universidade.
Por isso, é preciso sim analisar melhor quais foram os déficits, quais as lacunas e quem são essas crianças que não foram alfabetizadas – porque novamente vamos encontrar aqui as crianças em situação de maior vulnerabilidade –, para pensar estratégias que trabalhem de forma articulada a alfabetização e o letramento pra que as crianças efetivamente se alfabetizem e tenha uma trajetória escolar de sucesso.
Portal Cenpec: O MEC sinalizou que pretende recriar uma prova anual de alfabetização. Quais os cuidados que é preciso ter ao se pensar a avaliação de uma política pública de alfabetização?
Anna Helena: As avaliações externas são muito importantes para o desenvolvimento de uma política pública. Mas não podemos esquecer que são importantes também as avaliações somativas e formativas, aquelas que dão instrumentos concretos para as(os) professoras(es) elaborarem suas práticas em sala, as(os) diretoras(es) das escolas planejarem a gestão no sentido de apoiar a alfabetização das crianças e até aos(os) secretárias(os) municipal de educação ajustar as suas políticas.
Então ao mesmo tempo que é preciso pensar as avaliações em termos de política pública, é preciso pensar em apoio para essa avaliação que acontece na sala de aula, que vai ser fundamental para ajudar as(os) professoras(es) a reorganizar sua prática pedagógica, regrupar as(os) estudantes e pensar em novas estratégias para que cheguem ao final do terceiro ano sabendo ler e escrever.
Portal Cenpec: O Cenpec já conduziu e apoiou diversas experiências de alfabetização ao longo dos mais de 30 anos de atuação. Que lições foram aprendidas desses projetos que ajudam a pensar uma política pública de alfabetização?
Anna Helena: Logo que o Cenpec foi fundado, a Maria Alice Setubal lançou o Letra Viva, que era um material didático de alfabetização. Desde então, temos feito diversas experiências.
Uma das mais marcantes foi o trabalho de sistematização do programa Alfaletrar, junto com a professora Magda Soares, sistematizando e organizando a experiência de Lagoa Santa (MG).
A partir disso, trabalhamos com o Letra Viva Alfabetiza em diferentes municípios do Brasil, que buscou abordar esse processo dessa perspectiva integrada, considerando a importância fundamental da formação da rede e em rede para garantir a alfabetização de todas(os) as(os) alunas(os).
Esse olhar para a formação da rede toda é fundamental para que a experiência seja bem-sucedida.
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