Cenpec lança nota técnica contra educação domiciliar

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Cenpec lança nota técnica contra educação domiciliar

Documento aponta equívocos no PL 2.401/2019, que autoriza o homeschooling, e ressalta que a educação é direito de todos e dever da família e do Estado

Por João Marinho

O governo enviou ontem à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 2.401/2019, que pretende autorizar o homeschooling (educação domiciliar) no Brasil. 

A minuta do projeto, que é acompanhada de uma comunicação assinada pela ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e pelo ministro Abraham Weintraub, da Educação (MEC), altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para permitir a nova modalidade de ensino na educação básica.

Em nota técnica divulgada nesta quinta-feira (18/04), o CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – posiciona-se de forma contrária ao PL 2.401/2019 e pede aos parlamentares que não aprovem o projeto.

Omissões e equívocos sobre educação

O documento aponta uma série de razões para não recomendar a aprovação. Além de o projeto de lei não determinar como será fiscalizado o cumprimento dos dias letivos, ele ignora a complexidade da educação como política pública e é omisso quanto aos custos e às atribuições da implantação do homeschooling.

“Falta ao Projeto de Lei 2.401/2019 até mesmo um diagnóstico preciso sobre a real demanda por educação domiciliar. Em documento enviado ao Congresso Nacional no início deste ano, o governo sustentou que mais de 30 mil famílias adotariam a prática no Brasil. Já o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos estima, com base em dados oferecidos por associações que defendem a prática da educação domiciliar, que esse número é de cerca de 7,5 mil famílias”, aponta a nota técnica.

O CENPEC lembra que a participação de pais e responsáveis na formação escolar de crianças e adolescentes já é assegurada na Constituição e na LDB e efetivada por meio de conselhos e fóruns de educação, projetos político-pedagógicos participativos e outros instrumentos de gestão democrática.

O documento também pontua que, de acordo com a Constituição, a educação é um dever tanto da família como do Estado e que o PL contém equívocos preocupantes sobre a própria concepção do papel da educação: “Esta não deve ser limitada ao âmbito instrucional, mas desempenha papel preponderante na formação (…). A escola, cabe lembrar, surgiu como resposta institucional a uma demanda por processos de educação formal (ampla) que complementem a educação familiar (específica) e ganhou cada vez mais relevância quanto mais complexas se tornaram as sociedades. Ter acesso à educação passou a ser um direito de todos e um dever dos Estados”.

Leia abaixo a nota técnica do CENPEC, na íntegra.


NOTA TÉCNICA SOBRE O PROJETO DE LEI 2401/2019

Educação domiciliar é a negação do papel da escola

Preocupado com as implicações do Projeto de Lei 2.401/2019, que autoriza o ensino domiciliar na educação básica, e ciente das suas responsabilidades perante o setor educacional brasileiro, para o qual contribui com projetos, pesquisas e tecnologias há 32 anos, o CENPEC posiciona-se de forma contrária ao referido instrumento e recomenda aos parlamentares que não o aprovem.

Esse posicionamento fundamenta-se na ponderada reflexão sobre um conjunto de razões, que vão detalhadas a seguir:

•  A Constituição Federal, em seu Artigo 205, estabelece que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família” e que “será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. A garantia do direito à educação não é, portanto, uma prerrogativa de uma ou de outra instituição, mas um dever de ambas.

•  As obrigações de registrar as matrículas e os planos pedagógicos individualizados e de realizar avaliações anuais, como pretende o PL 2.401/2019, são condições necessárias, mas não suficientes para garantir a oferta da educação básica em conformidade com todo o arcabouço jurídico-institucional hoje existente na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei Federal 9.394 de 20 de dezembro de 1996), no Plano Nacional de Educação (PNE, Lei Federal 13.005 de 15 de junho de 2014), na Base Nacional Comum Curricular (BNCC, Parecer CNE/CP 2 de 22 de dezembro de 2017) e nas Diretrizes Curriculares Nacional da Educação Básica (Parecer CNE/CEB 7 de 7 de abril de 2010).

•  O Projeto de Lei 2.401/2019 não determina como será fiscalizado o cumprimento dos 200 dias letivos previsto em lei e das 800 horas-aula anuais, no caso do Ensino Fundamental, e 1.000 horas-aula anuais, no caso do Ensino Médio; como será garantido que os alunos tenham acesso a todos os direitos de aprendizado previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC); se será permitido que outros pais e responsáveis ou profissionais contratados por eles ministrem as atividades pedagógicas em domicílio; qual será a formação mínima dos tutores educacionais nesses casos; como serão feitos a fiscalização e o monitoramento da oferta; entre outros pontos nebulosos.

•  O Artigo 206 da Constituição Federal estabelece entre os princípios da oferta educacional “a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola” e a “valorização dos profissionais do ensino”.

•  Não está em questão o direito ou a capacidade de pais e responsáveis, de diferentes camadas da população, de transmitirem conhecimentos e saberes a seus filhos e tutelados no âmbito do convívio familiar. Contudo, sem embargo de alguns casos excepcionais, falta preparo e formação acadêmica à maioria dos pais e responsáveis para gerir tecnicamente a aprendizagem de seus filhos e tutelados.

•  A profissão docente demanda o domínio de conhecimentos teóricos e de conhecimentos e habilidades didático-pedagógicas teóricas e práticas, de modo a articular, a um só tempo, as dimensões cognitivas, socioculturais e afetivas de papel profissional. Não por acaso, o Artigo 62 da LDB determina que “a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura plena, admitida como formação mínima para o exercício do magistério na Educação Infantil e nos cinco primeiros anos do Ensino Fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal”.

•  Segundo a LDB, cabe aos docentes da educação básica: “I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II – elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III – zelar pela aprendizagem dos alunos; IV – estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V – ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; e VI – colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade” (Art. 13 da Lei Federal 9.394/1996). Diante da complexidade das atividades docentes, cabe questionar como o Ministério da Educação (MEC) pretende avaliar a competência técnico-profissional de pais e responsáveis para a execução das tarefas acima listadas.

•  O Projeto de Lei 2.401/2019 ignora que a educação é uma política pública complexa, voltada a garantir uma série direitos sociais e individuais como correlatos, como o direito “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (Artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA). Esses direitos estarão assegurados a crianças e adolescentes fora do ambiente escolar? Que política pública poderá lhes dar proteção, a começar com a informação sobre as múltiplas formas de abuso a que podem estar sujeitas?

•  As restrições legais propostas para o exercício de tal prática educativa por pais ou responsáveis – ser apenado por prática de crimes sexuais, por violência doméstica, por tráfico de drogas, por crimes hediondos ou por desrespeitos ao ECA – são insuficientes para proteger e resguardar a integralidade dos direitos de crianças e adolescentes.

•  No caso da violência sexual, o Ministério da Saúde informa que, entre 2011 e 2017, o Brasil teve um aumento de 83% nas notificações de violências sexuais contra crianças e adolescentes. No período foram notificados 184.524 casos, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45%) contra adolescentes. Segundo o Ministério, em 69,2% dos casos para as crianças e 58,2% para os adolescentes, a violência ocorreu dentro de casa e os agressores eram pessoas do convívio das vítimas – geralmente, familiares.

•  Outros 2,7 milhões de crianças e adolescente brasileiros – quase o mesmo número dos que hoje estão fora da escola – encontram-se em situação de trabalho infantil no País.

•  A proposta de substituir a educação escolar pela domiciliar exige considerar os custos e as atribuições, tanto do Estado como das famílias, no acompanhamento educacional e na certificação de aprendizado das crianças e jovens que seguirem a prática. O Projeto de Lei 2.401/2019 é omisso quanto a esses aspectos.

•  Falta ao Projeto de Lei 2.401/2019 até mesmo um diagnóstico preciso sobre a real demanda por educação domiciliar. Em documento enviado ao Congresso Nacional no início deste ano, o governo sustentou que mais de 30 mil famílias adotariam a prática no Brasil. Já o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos estima, com base em dados oferecidos por associações que defendem a prática da educação domiciliar, que são cerca de 7.500 famílias.

•  É preciso lembrar que a participação de pais e responsáveis na formação escolar de crianças e adolescentes já é um direito assegurado, tanto na Constituição Federal como na LDB, e ele se efetiva por meio da gestão democrática do ensino.

•  Para promover a cooperação entre a família e a escola, existem mecanismos como os conselhos e fóruns de educação, conselhos de escola, grêmios estudantis, associações de pais e mestres (APMs), projetos políticos pedagógicos participativos, reuniões de pais e mestres, entre outros. São espaços de diálogo, nos quais a participação dos familiares não é só um direito, mas uma necessidade.

•  O Projeto de Lei 2.401/2019 e a própria prática da educação domiciliar padecem de equívocos preocupantes quanto à própria concepção do papel da educação. Esta não deve ser limitada ao âmbito instrucional, mas desempenha papel preponderante na formação, por ser o primeiro espaço de socialização e constituição de uma esfera pública para crianças, adolescentes e jovens, promovendo a boa convivência entre todos os cidadãos e cidadãs.

•  A escola, cabe lembrar, surgiu como resposta institucional a uma demanda por processos de educação formal (ampla) que complementem a educação familiar (específica) e ganhou cada vez mais relevância quanto mais complexas se tornaram as sociedades. Ter acesso à educação passou a ser um direito de todos e um dever dos Estados, como parte das estratégias de democratização do saber e de redução de desigualdades de origem.

•  Nenhum modelo se mostrou mais eficiente para a garantia do direito à educação do que garantir uma escola pública de qualidade para todos. Além de promover a redução de desigualdades, ela promove a construção da identidade social e do pertencimento de diferentes sujeitos, ao mesmo tempo que garante a aprendizagem da convivência com as diferenças. Por isso, a escola pública é tão cara à democracia e por isso tem sofrido tanto com a desvalorização e o abandono pelo Estado e por alguns segmentos sociais.

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Confira o PL 2.401/2019

Saiba mais

Confira outros momentos em que especialistas do CENPEC se posicionaram a respeito do homeschooling.

► Estadão: Aluno reprovado por 2 anos perderá direito à educação domiciliar
 G1: Educação domiciliar: liberdade para algumas famílias pode prejudicar crianças vulneráveis, dizem especialistas
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