Reportagem especial publicada originalmente na plataforma Educação&Participação
Especialistas apontam para a necessidade de reforçar o diálogo entre a Base Nacional Comum Curricular e os fundamentos da educação integral
Quais os objetivos de aprendizagem a serem considerados pelos professores e coordenadores na hora de elaborar o projeto pedagógico da escola e o currículo das aulas da Educação Básica?
Durante a elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), professores, alunos, gestores, educadores e interessados na construção desse documento elaboraram propostas à consulta pública aberta pelo Ministério da Educação (MEC), que recebeu, até março de 2016, sugestões e contribuições da sociedade para a criação da Base.
Faltando cinco dias para se encerrar o primeiro levantamento da consulta pública, em 15 de dezembro, a plataforma Educação&Participação conversou com pesquisadores, professores, gestores, diretores de escolas e especialistas para saber quais contribuições a educação integral pode trazer ao currículo comum em prol do desenvolvimento integral e da promoção da cidadania de crianças, adolescentes e jovens.
De que forma a educação integral enxerga o currículo? De acordo com o Guia Políticas de Educação Integral, a proposta curricular da educação integral busca ampliar as oportunidades de aprendizagem de crianças, adolescentes e jovens, promovendo o desenvolvimento em todas as suas dimensões, o bom desempenho escolar e o desenvolvimento de valores e atitudes de convívio democrático, como o respeito à igualdade e à diversidade e o exercício da liberdade, da solidariedade e da participação na vida pública.
Para Letícia Araújo, do Núcleo de Educação Integral do CENPEC, ainda há um caminho a percorrer para que o currículo na educação integral esteja consolidado. “Como na maioria dos casos a educação integral não envolve a escola toda, seu currículo é desafiador. Nas escolas que possuem oferta de ensino em tempo integral, além das atividades regulares, a secretaria de Educação deve organizar as atividades diversificadas, de outros campos de conhecimento, como arte e cultura, por exemplo. O ideal é que um dia consigamos ter as atividades regulares e as diversificadas em um currículo único”, conta.
Segundo ela, o currículo vai além da grade de horário das disciplinas e além das aulas de Língua Portuguesa e Matemática, por exemplo. Ele se refere a toda a sua organização, aos espaços de debate, às discussões que os jovens trazem, aos espaços que eles possuem para opinar etc.
“Outra questão importante que a educação integral traz é que, ao pensar na construção de um currículo, é preciso pensar em como organizar os tempos: em quanto tempo os alunos devem se alimentar, descansar, é preciso ter um tempo de 50 minutos de aula?”
Para Ocimar Munhoz Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), além do tempo, a educação integral deve contar com a participação da sociedade para construir seu currículo.
“Um aspecto fundamental, ainda que não necessariamente exclusivo da educação integral, é a necessidade de que o planejamento curricular envolva professores e alunos, além de outros potenciais parceiros, para que haja maior adesão e legitimidade em sua definição e, sobretudo, execução. Adicionalmente, pode-se demarcar a necessidade, para a ampliação curricular, de que espaços que transcendam aos espaços exclusivos da escola sejam considerados como pertinentes às fontes ou base de conhecimentos escolares.”
Segundo Julia Dietrich, do Centro de Referências em Educação Integral, “a educação integral não pode ser incluída como uma modalidade de educação, mas sim como uma concepção educacional dentro da Base para todas as modalidades. Dessa forma, temos que pensar o currículo para além de conteúdos. Temos que pensar também em como queremos que as crianças aprendam esses conteúdos”.
Para Maria José Reginato, educadora, a discussão do currículo segundo a perspectiva da educação integral é uma ótima oportunidade de a escola rever sua função social. “Esse debate provoca equipes a pensar a escola como um todo, articulada e integrada. Se compreendemos currículo como o conjunto das atividades educacionais desenvolvidas pela escola, intencionalmente ou não (currículo explícito ou oculto), ele abrange conteúdos de aprendizagem que se referem às diferentes áreas do conhecimento sistematizado, a valores e habilidades, pois não existe separação entre eles. Aprendem-se conceitos, valores e habilidades ao mesmo tempo”, afirma.
“Quanto mais se discutir o que se pretende com a ação pedagógica no interior da escola, mais claro e consciente fica o papel de cada um em relação ao trabalho com os conteúdos das áreas e ao uso dos tempos e dos espaços, podendo-se planejar, de forma mais consciente e adequada, as situações de aprendizagem a serem oferecidas aos estudantes. Isso vale tanto para as escolas de quatro horas, como para as de seis, sete ou oito horas.”
Como deve ser construída a Base Nacional Comum Curricular? Mais do que uma discussão sobre atividades e disciplinas, Julia Dietrich defende que a consulta pública da BNCC deveria promover uma discussão mais ampla e profunda sobre o país e o cidadão que queremos formar.
“O documento que foi publicado é uma listagem de conteúdos, determinando por ano o que o aluno tem que aprender. Não sabemos, porém, o motivo pelo qual ele deve aprender isso, esse debate não está público. Mais do que conteúdos, o currículo tem que dizer a quem ensinar, qual sujeito a gente quer que saia da escola, qual deve ser a função social da escola. Vemos no documento da Base um preâmbulo muito discreto que fala do papel da educação, mas muito pouco objetivo.”
Ela continua: “temos que pensar também em como queremos que as crianças aprendam esses conteúdos. Currículo diz também sobre essas crianças ficarem o dia inteiro sentadas, diz sobre essas crianças não acessarem o seu território, diz sobre muitas vezes elas não serem ouvidas, sobre os conhecimentos que elas possuem serem desconsiderados. Tudo isso é currículo. Como a gente vai continuar essa discussão? A Base é um pedaço dessa discussão, não é currículo, é um pedaço que orienta os secretários a construir suas propostas de rede e depois você tem as escolas construindo suas propostas pedagógicas e você tem a sala de aula. Currículo é tudo isso que acontece, é toda essa confluência de etapas”.
De acordo com a opinião da então secretária de Estado da Educação de Minas Gerais, Macaé Evaristo, uma Base Nacional Comum Curricular deve contemplar a diversidade de cada região.
“Em um tema tão importante como esse, temos que partir de um processo de participação e reflexão coletiva, em que cada região do nosso país seja considerada, pois pensar em uma base curricular comum para o nosso país é também pensar na diversidade cultural, de contextos. Ainda que no documento esteja escrito ‘Base Nacional Comum’, para o nosso país, teremos que pensar em uma base nacional plural.”
O professor Ocimar Alavarse argumenta que a Base não pode impor atividades ou metodologias aos professores. “Pode se constituir em referências para tudo aquilo que se julga extremamente pertinente ao escopo de aprendizagens, notadamente no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, indispensáveis a uma escolarização obrigatória. Uma BNC não tem como eixo central a educação integral, ou seja, seu horizonte é a educação escolar de alunos em geral. As iniciativas de educação integral é que devem atentar para a Base e procurar superá-la justamente pelo fato de pretender uma ampliação curricular”, diz.
Para Verônica Branco, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Base deveria dialogar com o debate da educação integral sobre currículo.
“O documento da BNC que foi apresentado não mostra um diálogo com a educação integral. Temos uma ideia de currículo de educação integral que ainda está sendo construída e a proposta do MEC não conversa com esse debate. É preciso propiciar a discussão, fazer uma proposta de contextualização de saberes e não dos livros didáticos.”
De acordo com Maria José Reginato, “mais que ficar esmiuçando as expectativas de aprendizagem, o importante é envolver os educadores numa discussão curricular séria, considerando o projeto democrático de país previsto na nossa Constituição e o contexto sociocultural e econômico da sociedade contemporânea. Além disso, sabemos bem que outras condições são necessárias para que qualquer medida de política pública se implemente, de fato, em escala, como o financiamento para garantir bons salários e condições dignas de trabalho”.
Ao encontro do que Maria José defende, Ana Elisa Siqueira, diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Desembargador Amorim Lima, de São Paulo (SP), também acredita que é preciso enfocar questões estruturais para se discutir a Base.
“O currículo é muito mais do que o conteúdo, é espaço, é tempo. Não sei se a discussão sobre esse documento fará alguma diferença se outras questões não forem abordadas, tais como a formação dos professores, um maior financiamento da educação para – inclusive – melhorar o espaço das escolas, por exemplo.”
Para a secretária municipal de Educação de Vitória (ES), Adriana Sperandio, o documento da Base carece de elementos defendidos pela educação integral.
“Há, de fato, na produção apresentada, uma ausência das demais discussões que estão associadas à ação de repensar a educação brasileira, em especial a educação integral. Ainda estou acreditando que esse processo de debate serve para apontarmos esses elementos. O que se espera é que esse processo, apontado e dito como dialogado, de fato possa interferir nessa produção ao longo do período de consulta pública, porque senão teremos um documento que não vai retratar as trajetórias e as vivências ocorridas no sistema de ensino.”
Segundo Ítalo Dutra, diretor de Currículos e Educação Integral do MEC, uma das críticas quanto ao documento preliminar da Base é a falta de veemência na formação humana integral.
“Essa é uma fragilidade, mas há a expectativa de que a discussão seja feita no próprio portal e há também os estados, que têm discutido com base no Mais Educação. O tempo que houve para discutir a educação integral na proposta foi escasso, o que pode ter levado a essa fragilidade: estamos cientes disso.”
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