Por que é difícil – e fundamental – combater o trabalho infantil
Entenda como o trabalho infantil está intimamente ligado à educação e por que precisamos nos sensibilizar mais para essa violação dos direitos das crianças e adolescentes
Por Stephanie Kim Abe
Infelizmente, ainda há muitos motivos pelos quais o Dia Mundial e Nacional contra o Trabalho Infantil (12 de junho) se faz necessário.
A começar pela falta de dados: os mais recentes são de quatro anos atrás, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE de 2019. Naquele ano, o Brasil registrava cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil. Sem dados, não conseguimos ter real dimensão do problema.
O trabalho infantil é uma violação dos direitos das crianças e dos adolescentes. No Brasil, o trabalho é proibido para crianças e adolescentes com menos de 16 anos, exceto na condição de Aprendizagem Profissional, que pode ocorrer a partir dos 14 anos.
Além disso, há uma questão cultural que influencia nesse combate, pois há algumas formas de trabalho infantil que não são vistas como “tão graves” – como, por exemplo, o trabalho infantil doméstico (TID). E pelo contrário: o TID se encontra na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), aprovada pelo Decreto nº 6.481/2008.
Para explicar melhor sobre o cenário do trabalho infantil no Brasil, a sua relação com a educação e a importância de se sensibilizar para essa violação dos direitos das crianças e dos adolescentes, o Portal Cenpec conversou com a cientista política Tânia Dornellas.
Tânia foi assessora do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) e hoje é assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Confira a seguir:
Portal Cenpec: Dados recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Unicef indicam que, globalmente, houve uma estagnação na queda do número de crianças e adolescentes envolvidas(os) em trabalho infantil. Qual a situação do trabalho infantil hoje no Brasil?
Tânia Dornellas: De fato, essa estagnação no combate ao trabalho infantil tem ocorrido por diversos motivos – um deles a própria pandemia. Isso se agrava porque a articulação contra o trabalho infantil está frágil em todos os âmbitos: regional, nacional, internacional. Uma pena, pois nós tivemos, nos anos 1990, uma articulação muito forte no mundo todo para combater o trabalho infantil. Mas esse movimento vem se diluindo nos últimos anos, inclusive aqui no Brasil.
Esse é um dos motivos pelos quais não sabemos realmente a dimensão do trabalho infantil no país, porque em 2020 e 2021 não foram coletados dados sobre a situação das crianças e dos adolescentes submetidos a essas condições.
Mas temos como observar, no dia a dia, que essa violação de direitos está ainda muito presente. Basta você sair e olhar nos sinais, você vai ver muitas crianças na rua, pedindo dinheiro.
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Portal Cenpec: Quais fatores dificultam o combate ao trabalho infantil no Brasil?
Tânia Dornellas: Das violações dos direitos de crianças e adolescentes, o trabalho infantil é o mais aceito pela sociedade, porque ele é naturalizado. Se falamos sobre a violência sexual, a sociedade se sensibiliza. Porém, se falamos sobre trabalho infantil, diversos mitos vêm à tona com força, como “melhor que esse menino está trabalhando, pois poderia estar roubando” ou “é melhor estar na rua do que estar em casa à toa”.
Nas áreas rurais, principalmente – mas não só nelas –, a concepção de que o trabalho se sobrepõe à educação também dificulta o combate à essa violação. É preciso ampliar as condições de financiamento e de infraestrutura das escolas do campo para que os povos dos campos, das florestas e das águas tenham o direito à educação garantido de forma a contribuir para o reconhecimento e o desenvolvimento desses territórios e de suas populações. Promover o direito à educação é também o caminho para a formação de sujeitos críticos e ciente de seus direitos, o que contribui diretamente para o combate ao trabalho escravo, por exemplo.
A sociedade brasileira – e isso também se reflete na sociedade global – tem essa visão da criança como uma miniatura do adulto, e não como um sujeito de direito. Sendo assim, ela poderia sim trabalhar.
A questão não é que o trabalho é ruim, mas que há momentos da vida em que ele deve acontecer – e a infância não é um deles. Até mesmo para que essas crianças e adolescentes possam acessar trabalhos decentes, dignos, elas precisam ter uma boa formação.
Crianças e adolescentes têm direito a brincar, estudar, se desenvolver plenamente.
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Portal Cenpec: Quais as consequências do trabalho infantil para o desenvolvimento da criança e/ou da(o) adolescente?
Tânia Dornellas: A fase da infância e da adolescência é um momento em que as crianças e adolescentes estão em pleno desenvolvimento físico. Nesse sentido, elas não têm as condições físicas e psicológicas pra assumir a responsabilidade de um trabalho no lugar de uma pessoa adulta.
As consequências do que acontece com uma criança ou adolescente durante a sua fase de desenvolvimento o(a) acompanha por toda a sua vida. E isso acontece também com as sequelas do trabalho infantil, que podem ser físicas, podem ser mentais, podem fazer com que esses sujeitos não desenvolvam uma análise crítica pra que possam fazer uma leitura do mundo e se tornem submissos etc.
O peso excessivo, os esforços repetitivos, a exposição sem proteção ao sol, o contato direto com agrotóxicos causam sequelas. Em uma criança ou adolescente estes impactos negativos na saúde podem ser sentidos somente na fase adulta, momento em que teoricamente seria uma pessoa economicamente ativa mas que, por conta da inserção precoce no mundo do trabalho, muitas vezes são fortes candidatos a aposentadorias precoces devido às condições físicas e também psicológicas do trabalho infantil.
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Portal Cenpec: Como o trabalho infantil afeta a educação?
Tânia Dornellas: A relação do trabalho infantil com a educação é muito intrínseca.
Quando analisamos os altos índices de evasão escolar, percebemos que muitas das crianças e adolescentes que se encontram fora da escola estão trabalhando. E, quando analisamos o perfil das crianças e adolescentes que estão fora da escola, notamos um recorte econômico, territorial e de cor, e encontramos esses mesmos recortes ao analisar o perfil das crianças e adolescentes que estão em situação de trabalho infantil. Então existe uma correlação muito forte, que é uma via de mão dupla.
O que acontece com uma criança que está matriculada na escola, mas está trabalhando? Ela fica mais cansada, perde o foco, não consegue acompanhar as aulas. Isso vai gerando um conjunto de frustrações e de estigmas dentro da própria escola, que acaba por desestimular a a permanência daquela(e) estudante no processo educativo.
E, mesmo que venha a superar essas dificuldades, muitas vezes, os percalços em sua trajetória escolar podem contribuir para um afastamento do espaço escolar e uma aproximação maior com o mundo do trabalho. É importante termos claro que a garantia do direito da educação só se efetiva quando a aprendizagem ocorre e, para que ela ocorra, o Estado, a sociedade e a família precisam assumir o compromisso com a proteção de crianças e adolescentes.
Então se você não assegura as condições adequadas para aquele sujeito estar inserido na escola e aprendendo, então está violando o direito à educação daquela criança ou daquele(a) adolescente.
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Portal Cenpec: Que medidas precisam ser tomadas para combater o trabalho infantil?
Tânia Dornellas: Os impactos, sempre negativos do trabalho infantil, estão presentes nas escolas. E, nesse sentido, as políticas de educação tem que estar articuladas com outras políticas setoriais no combate ao trabalho infantil e à permanência das(os) estudantes nas escolas. Vale lembrar que o trabalho infantil também impacta no alcance das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), da Agenda 2030 e sempre são objeto de recomendações ao Brasil nos períodos da Revisão Periódica Universal (RPU).
A estratégia de busca ativa, que é ainda pouco realizada no Brasil, é uma importante aliada, assim como o fomento da educação integral, pois olha justamente para o desenvolvimento integral das crianças e dos adolescentes.
Se olharmos para o trabalho infantil doméstico (TID), veremos que o perfil das crianças e adolescentes atingidas é muito evidente: meninas (85%), negras (70,8%) e adolescentes de 14 a 17 anos (94% do total). São meninas que vêm de municípios menores, normalmente de áreas rurais, e que são liberadas das suas famílias para serem apadrinhadas para estudar. Mas, no final, acabam ficando à disposição dessas pessoas trabalhando em casa.
O trabalho infantil doméstico acontece muito por conta de uma herança perversa da escravidão no nosso país. Ele é perverso e invisível, até mesmo para quem luta ao lado dos movimentos negros antirracistas.
Agora, é preciso lembrar que crianças e adolescentes não estão soltas na sociedade: elas se inserem em núcleos familiares. Assim, não adianta buscar políticas que protejam diretamente as crianças, se não há garantia de que aquele núcleo familiar será fortalecido e terá acesso também às políticas públicas sociais, como o Bolsa Família, o acesso à saúde, assistência social etc.
O trabalho infantil só poderá ser combatido realmente se forem tomadas medidas intersetoriais, como a sensibilização e a formação de profissionais que atuam na linha de frente de diversas áreas, como da saúde ou fiscais do trabalho – e até mesmo professoras(es) e demais educadoras(es).
Só combateremos de fato o trabalho infantil se mudarmos o olhar da sociedade para que dê valor à proteção dos direitos das crianças e adolescentes.
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