- Tamara Castro
Por Stephanie Kim Abe
Infância
Um gosto de amora
Comida com sol. A vida
Chamava-se: “Agora”.
Guilherme de Almeida
Hoje, 24 de agosto, celebra-se o Dia da Infância. A data promove uma reflexão sobre as condições em que as meninas e meninos vivem no mundo inteiro. Aqui no Brasil, são consideradas crianças as pessoas com até 12 anos de idade incompletos (Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2012), documento que orienta as práticas pedagógicas para essa etapa de ensino, definem a criança como:
Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura.”
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
É esse conceito que os(as) educadores(as) devem ter sempre em mente quando pensam nas suas interações diárias e planejamentos pedagógicos na Educação Infantil. Isso porque ele explica o que a doutora em educação e assessora em educação infantil Silvana Augusto chama de “dupla experiência”:
A criança pequena vive uma dupla experiência: de subjetivação, de conhecer-se a si mesma; e de alargamento de mundo, de conhecer os outros e de aprender a se relacionar com eles e de aprender sobre a sua cultura e outras também. “Cultura” é tudo aquilo que é produzido pelo humano, que altera o seu entorno, e que pode ser transmitido. As crianças produzem cultura, sempre fizeram isso.”
Silvana Augusto
Alguns questionamentos contemporâneos têm surgido sobre a cultura da infância, principalmente nas áreas de Sociologia da Infância e Pedagogia da Infância. Afinal, a infância é algo universal? Há diferentes maneiras de viver a infância? Quais as contribuições que as crianças trazem para a sociedade? Mais do que isso, quais as políticas públicas que temos colocado em prática para garantir o direito das crianças?
Para explorar o assunto, o Portal Cenpec conversou com três especialistas da área sobre o assunto:
- Elni Elisa Willms, professora do Instituto de Educação do Departamento de Teorias e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Mato Grosso (IE/DTFE – UFMT).
- Ketiene Moreira da Silva, doutoranda em Educação, professora e formadora da rede municipal de São Paulo e coordenadora da Escola Pequenitos, em Santo André (SP).
- Silvana Augusto, doutora em Educação, assessora para Educação Infantil, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Educação Infantil do Instituto Singularidades, colaboradora do Instituto Avisa lá e coordenadora pedagógica do Colégio São Domingos.
Confira a entrevista abaixo:
Portal Cenpec: Em sua percepção, é importante pensar na infância como um estágio universal na vida humana, com características comuns a toda pessoa? Ou é importante marcar a pluralidade de formas de ser criança?
Elni Willms: Para a Sociologia da Infância, a infância é uma etapa da vida, do ponto de vista geracional. Temos a infância, a adolescência, a juventude, a adultez. Nesse sentido, é uma etapa universal, ou seja, todo mundo passa pela infância, independentemente de onde esteja. Mas não passam por ela da mesma forma.
Ser criança numa sociedade indígena é diferente de ser criança em um bairro periférico, em um quilombo, em um condomínio de classe média no centro da cidade. Então nós temos diferentes culturas e formas de viver a infância. Isso marca o caráter dinâmico do conceito e a importância de falar de culturas das infâncias.
Silvana Augusto: Há uma maneira mais contemporânea de pensar a infância, que a considera como uma experiência, e não como uma faixa etária. Esse é um jeito curioso e interessante de se pensar, porque permite que a gente reviva e recupere aspectos da nossa infância ainda na vida adulta. Esse espírito infantil na vida adulta se manifesta, por exemplo, em situações em que lidamos com a coragem e a curiosidade sem freio ou quando precisamos aprender algo novo – uma experiência tipicamente infantil.
Ao pensar nessa perspectiva da experiência subjetiva, vemos as mais diferentes possibilidades e infâncias. A infância da periferia é de uma construção subjetiva diferente daquela de uma criança que vive à beira do rio na Amazônia. Essa diversidade enorme que temos, tanto de experiência que foge da faixa etária, quanto de contexto cultural, faz a gente pensar a precariedade da ideia de “infância” no singular.
Pensando que a infância é um estado muito importante na nossa vida pra sempre, não só quando somos criança, é que se luta e se defende tanto a chance de a criança ser criança nessa primeira etapa da vida. Porque nem sempre essas duas coisas andam juntas: você pode ter uma criança que não tem uma infância.
Por isso é importante defender criança como conceito de sujeito de direito, porque, principalmente no Brasil, mas em outros lugares do mundo também, os direitos básicos da infância, estabelecidos em documentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, ainda não foram garantidos.
Conheça a história e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente
Portal Cenpec: Como os(as) educadores(as) podem trabalhar de forma respeitosa e dialógica com as singularidades de ser criança ao mesmo tempo que desempenham seu papel na socialização e apresentação de outros mundos e possibilidades de ser das crianças?
Silvana Augusto: O trabalho da escola começa com o reconhecimento da família como espaço de cultura, de pertencimento, e de que elas são diferentes, mesmo dentro de uma mesma comunidade. O(a) educador(a) precisa prestar atenção na forma como elas se expressam, como manifestam as suas necessidades, os seus desejos, quais os seus interesses e contribuições que ela pode dar para o coletivo. Assim, a escola está pensando as crianças na sua singularidade, na sua subjetivação.
Outro eixo de responsabilidade do(a) educador(a) é ampliar o mundo para que essa criança construa a sua identidade na cultura em que ela está, a que ela pertence e participa. Ela vai fazer isso ao modo infantil, com a sua visão de mundo. Ela vai descobrir quem ela é, quais são seus valores, gostos, preferências, como os outros a veem e como ela se identifica e compartilha os dias com os outros com quem convive.
É importante que cada professor(a) tenha um exercício próprio, de se livrar da facilidade dos estereótipos, das generalizações muito rápidas, para poder trabalhar de fato essa diversidade.
É muito comum ver professor(a) que organiza todo o seu trabalho pedagógico com essa ideia de que a cultura da infância tem a ver com o resgate das brincadeiras tradicionais, de rua. Mas isso é a cultura de uma certa infância – inclusive, pode responder muito bem às memórias que esse(a) professor(a) tem da sua própria infância. E que também não está no passado, porque nas periferias, por exemplo, onde a vida comunitária é mais intensa, as brincadeiras de rua acontecem, não são ensinadas na escola.
A cultura da infância é a cultura do mundo, ela está o tempo todo em interação com outras perspectivas. Precisamos estar bastante curiosos(as) e atentos(as) para encontrar as marcas dessas culturas nas experiências das crianças, sem atravessar com o nosso olhar já concebido do que seja uma infância. Então se o(a) educador(a) é formado(a) para observar, escutar mais as crianças, ele(a) vai saber fazer essa mediação.
Ketiene Moreira da Silva: Quando conceituamos “cultura da infância”, nós dizemos que as crianças têm um jeito de ver o mundo, de reinterpretar, de reproduzir que é totalmente diferente da lógica do adulto. Se ele não quebra essa lógica, ele não consegue enxergar essa criança como potência.
Os(as) educadores(as) precisam ter formação e estar preparados(as) para produzir uma escuta e um olhar sobre o que a criança está de fato interessada. Precisa saber reconhecer a cultura infantil, entender que o trabalho pode ser feito por várias abordagens (trabalhar com projetos), que as crianças formam um grupo sim, que têm conteúdos sociais e regras entre os pares, e que tudo isso se forma entre as relações que vão se traçando e o que elas observam, levam e recriam do mundo dos adultos. São os conceitos de “cultura de pares” e “reprodução interpretativa” de Willian A. Corsaro, que gosto muito.
Assista a seguir o documentário Conhecendo Reggio Emilia, do Programa do Curso de Pedagogia Unesp/Univesp:
As pedagogias participativas – como as de Madalena Freire, de Reggio Emilia, a abordagem Pikler – estão muito próximas desse conceito de culturas das infâncias. São aquelas que acreditam na escuta, na busca de propostas construídas com base nos interesses das crianças, sobre o que está permeando as descobertas, as experiências e as curiosidades que elas têm.
Elni Willms: É importante reiterar que as crianças constroem, participam, interferem e modificam a sociedade e que elas são agentes sociais. Isso porque, infelizmente, ainda temos pessoas e até educadores(as) que acham que “criança não sabe nada” ou que ela vai ser alguma coisa – ela já é. É uma visão desenvolvimentista que ainda perdura nos dias de hoje, e que precisamos desmistificar para que todos(as) – educadores(as), famílias, poder público e sociedade – olhem as crianças com mais respeito.
Ao observar as diversidades, os(as) educadores(as) reconhecem as potências das crianças e o processo delas de reconhecer-se. Por exemplo, a ideia de que criança só brinca é própria da nossa sociedade. Entre os povos indígenas, as crianças não estão apartada da vida dos adultos. Elas vão ao rio, à roça, acompanham os adultos nos rituais, nas celebrações etc. Então a ideia do “adulto trabalha, criança não” é uma construção da sociedade – e o(a) educador(a) deve entender essas diferenças.
Assista ao vídeo do Território do Brincar sobre o cotidiano das crianças no Território Indígena Panará (PA):
Portal Cenpec: O brincar é visto hoje como um direito das crianças. Pensando nas diferentes realidades socioeconômicas, como trabalhar, de forma articulada com as famílias, no sentido de tornar este um direito efetivamente respeitado?
Silvana Augusto: Primeiro, o(a) professor(a) precisa compreender que quando falamos de brincadeira, não estamos tratando só de um brinquedo estruturado, um jogo de regra, O próprio modo da criança ver o mundo é brincante. O jeito como ela aprende e pensa as suas hipóteses, que explica os fenômenos que ela observa no mundo é brincante. Então não existe nada na Primeira Infância que não seja brincar.
Isso não significa que o brincar seja recurso para ela aprender alguma coisa. Ele é, em si mesmo, o objeto do aprender. De pouco adianta a criança ter o direito de parque regulado na escola, por exemplo, uma hora por dia, se todo o resto do tempo ela está na escola confinada a materiais didáticos empobrecidos, a sistemas fechados de ensino e desafios de treino de coordenação motora simplórios e básicos. Isso não é a garantia do direito de brincar.
Então a criança que tem a oportunidade de pensar por conta própria, de fazer suas próprias perguntas, de buscar respostas apoiadas em fontes e recursos que os professores oferecem, ou seja, que tem esse grau de protagonismo, com certeza ela já tem o seu direito de brincar preservado. Pra garantir o direito de brincar, temos que compreender a natureza do pensamento da criança e o papel que a brincadeira tem no seu desenvolvimento.
Elni Willms: Os(as) educadores(as) têm que entender que todas as crianças brincam, mas que não brincam da mesma forma. Elas vão brincar com aquilo que está próximo delas. Elas reinventam, criam. Há práticas brincantes até nos lugares que parecem mais impróprios para isso. No filme O menino do pijama listrado, por exemplo, vemos uma criança que brinca num campo de concentração. As crianças que vivem na rua brincam também. As que vivem em favelas em palafitas brincam na água suja. As que moram perto do mar brincam no barco, vão pra água. Isso é perigoso? O que é a brincadeira pra elas?
Confira a seguir trailer do filme O menino do pijama listrado:
Os(as) professores(as) devem olhar para essas diferentes realidades, partir de outras perspectivas, entender a cultura e a infância que essas crianças vivem.
Portal Cenpec: Como você analisa as políticas públicas dos últimos anos voltadas à infância? Tivemos retrocessos ou avanços?
Silvana Augusto: Em termos de política pública arrojada, o último avanço importante que tivemos foi o Proinfancia, que fez formação de professores(as) da Primeira Infância, e o programa Brasil Carinhoso, que conseguiu levar dinheiro do governo federal para os municípios construírem creches para crianças de 0 a 3 anos – um segmento que nunca teve investimento. Fora isso, não tivemos avanço nenhum. Pelo contrário, andamos pra trás.
Os retrocessos foram coroados com a aprovação do último edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para a Educação Infantil, que foi muito restritivo, de qualidade bem duvidosa e que favorece editoras e o mercado editorial de livro ruim. Esses materiais que chegarão para as escolas não permitem às crianças acessar diversidade, instigar a imaginação, ampliar a experiência do pensar. Teremos que enfrentar os impactos dessa política desastrosa nos próximos dois, três anos.
Elni Willms: Toda a nossa construção de um currículo aberto, participativo, dialógico está hoje ameaçada pela invasão das cartilhas na educação infantil. Ao adotá-las, o governo nega que a criança é capaz de construir e que o professor é capaz de pensar práticas criativas ou dialógicas.
Também não tenho nenhuma crítica positiva à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A meu ver, faltou referenciais teóricos e o documento acaba transformando tudo em objetivos a serem mensuráveis – como se fosse possível mensurar a construção do conhecimento na educação infantil. Há muitas coisas que não passam pelos números e tabelas e que são importantes também nesse processo. A Base me parece uma maneira de controlar os(as) professores(as), uma prática tecnicista.
Entenda mais sobre as divergências entre a BNCC e a Política Nacional de Alfabetização
Ketiene Moreira da Silva: A educação infantil é muito jovem no Brasil ainda, e tem sido muito ameaçada. O que temos visto atualmente são essas pedagogias transmissivas e os materiais didáticos que colocam como as crianças devem ou não aprender, que engessam as práticas e que colocam as crianças em tabelas.
Se continuarmos nesse caminho, as perdas serão enormes. Perdemos a oportunidade de ver o mundo com os olhos das crianças – ou pelo menos de tentar fazer essa interpretação -, tolhemos a possibilidade da formação de cultura de pares, de recriarem e passarem uns aos outros os conhecimentos que eles obtêm. Tolhemos, porque sempre vai ter cultura infantil, mesmo com material didático. Ao oferecer algo pronto, tiramos a possibilidade de elas entenderem que o mundo é feito de perguntas, e não respostas, e que ela pense por si só.
Nós perdemos talvez grandes pesquisadores(as), pensadore(as), professores(as), profissionais que poderiam fazer muito pela nossa sociedade, mas que foram podados em suas potências.
Vem aí: mais conteúdo sobre infâncias no Portal Cenpec
A partir do dia 1º de setembro, será inaugurada uma nova temática no Portal Cenpec, voltada para as Infâncias. Além das reportagens que tratam do tema, a área será alimentada por materiais produzidos em projetos realizados em parceria com o Instituto Minidi Pedroso de Arte e Educação Social – Impaes. É o caso, por exemplo, das oficinas do projeto Arte na Creche, focada na formação de professores(as) em arte-educação em CEIs. Os materiais serão publicados periodicamente aqui no Portal Cenpec.
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