- Tamara Castro
Por Tamara Castro e Maria Alice Junqueira
Em continuidade ao debate sobre a Política Nacional de Alfabetização (PNA), instituída pelo governo federal por meio do Decreto nº 9.765, em abril deste ano, o CENPEC Educação entrevistou o especialista em ensino e aprendizagem da língua portuguesa, Antonio Gomes Batista.
Integrante do Conselho de Administração do CENPEC Educação, Batista desenvolve pesquisas sobre desigualdades escolares e sua relação com as desigualdades socioespaciais em grandes centros urbanos.
Entre outras questões, o entrevistado reflete sobre a complexidade em torno do ensino e aprendizagem da língua escrita, ressaltando a importância de apoiar o trabalho da escola e dos professores para o sucesso na alfabetização. Sobre o método fônico, destacado na PNA, pondera:
É muito importante desenvolver a consciência fonêmica. Isso não significa que essa consciência possa ser adquirida por meio do trabalho com fonemas isolados.”
Antonio Gomes Batista
Leia mais na entrevista a seguir.
CENPEC Educação: A PNA define como público-alvo prioritário as crianças na primeira infância e alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Qual a sua opinião sobre isso?
Antonio Gomes Batista: Esse é um aspecto que vejo como positivo na Política Nacional de Alfabetização. É na primeira infância que a arquitetura cerebral está se formando. Então, é muito importante introduzir atividades com a língua escrita – entenda que, ao falar “língua escrita”, não estou me referindo nem a leitura nem a redação.
O contato e a reflexão sobre a língua escrita com crianças pequenas é uma janela de oportunidade para que estas estabeleçam uma relação mais estreita com a cultura letrada. Nesse sentido, a escola tem papel central, pois é nesse espaço que a maioria das crianças brasileiras não só têm contato com práticas sociais de leitura, escrita e oralidade (o que costumamos chamar de letramento), como também refletem e apreendem as características do sistema alfabético (que é a alfabetização propriamente dita).
No entanto, quando se trata de educação infantil, é fundamental assegurar momentos e espaços para brincar e experienciar outras linguagens, garantindo o desenvolvimento afetivo e social das crianças, na perspectiva da educação integral. Não se pode reduzir seu desenvolvimento ao aspecto cognitivo.
É fundamental que uma política de alfabetização contemple a escola, prevendo programas de formação de professores, ampliação de vagas na educação infantil e no Ensino Fundamental, etc. Sem isso, a eficácia do programa é comprometida. Como será a implementação dessa política? Quais serão os próximos passos? Essas são informações de que nós necessitamos.
CENPEC Educação: Entre seus princípios, a PNA enfatiza a consciência fonêmica e a instrução fônica sistemática. Pode tecer algumas considerações a respeito?
AGB: Desde os anos 1980 e até hoje, está muito presente na escola uma ideia de que não é necessário um trabalho sistemático com a alfabetização, que a aprendizagem da língua escrita ocorre “naturalmente” pela simples exposição aos seus usos – mas isso é um equívoco. Na alfabetização, é muito importante a instrução sistemática das relações entre os sons da língua (fonemas) e as letras (grafemas) e das características estruturais do sistema alfabético.
O papel da aquisição da consciência fonológica na alfabetização é um ponto que deve ser destacado – como outras políticas e programas já têm feito; é o caso do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) e o Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic), no Ceará. A consciência fonológica envolve vários níveis, tanto da consciência de palavras, da consciência silábica e da própria consciência fonêmica. Isso é importante porque nosso sistema de escrita se baseia na relação entre letras e fonemas, não entre letras e sons. Em geral, no início do processo, o aprendiz faz a correspondência entre as letras e partes sonoras da palavra, mas, aos poucos, os fonemas se destacam.
Som = fonema?
Todo fonema é um som, mas nem todo som é um fonema.
“Todo som capaz de estabelecer uma distinção de significado entre dois vocábulos de uma língua é a realização física de um fonema.”
Já as variações dentro de um mesmo fonema são chamadas de variantes ou alofones. Por ex.: na palavra “tia”, o t pode ser pronunciado de diferentes formas de acordo com o sotaque, mas essa variação na fala não altera o significado.
Fonte: Dicionário Aulete
É muito importante desenvolver a consciência fonêmica. Isso não significa que essa consciência possa ser adquirida por meio do trabalho com fonemas isolados. No português, as consoantes só podem ser pronunciadas com o apoio de uma vogal. Por exemplo, ao falar pneu, falamos “peneu” ou “pineu”. Diferentemente de línguas como o inglês, em que há fonemas consonantais pronunciados sem fonema vocálico, como em cricket, que é pronunciado sem o /e/ [“crikt“]. A língua inglesa permite o isolamento de fonemas na fala porque tem uma estrutura baseada em vários encontros consonantais.
Já no português, as chamadas consoantes mudas, como o d em advogado” ou o “p” em “opção”, não são sons naturais da língua. Por essa característica estrutural do português, o ideal, na minha opinião, é trabalhar com sílabas. As crianças compreendem o que são os fonemas pelo contraste entre palavras: em sala, vala, cala, pala, mala…, a estrutura final é a mesma, mas o fonema inicial é diferente. Por meio da técnica da comutação (troca de fonemas), ele pode ser isolado, não na fala, mas tendo a visão da escrita.
No meu modo de ver, não há problema em trabalhar consciência fonêmica na alfabetização. Meu questionamento é apenas em relação à forma como isso pode ser trabalhado com as crianças.
Conheça jogos idealizados por Magda Soares para ajudar as crianças a desenvolver a consciência fonológica no nível do fonema:
A língua portuguesa tem especificidades que precisam ser estudadas de forma sistemática. Há palavras em que uma letra representa fonemas diferentes, por exemplo: em elefante, costumamos falar “elefanti”; assim, a vogal e tem tanto o som de /e/ como de /i/. Outro exemplo: em cantavam, a terminação
-am é pronunciada como ditongo (ão), mas esse som não está expresso na escrita. Essas questões estruturais da língua trazem dificuldades que precisam ser trabalhadas pelos professores. Para isso, é preciso ter um grande conhecimento linguístico, o que não é problema – mas é preciso investimento na formação docente, inicial e continuada.
CENPEC Educação: Na cartilha divulgada pelo MEC sobre a PNA, destaca-se o ensino das habilidades de decodificar e codificar na alfabetização:
Se alguém é alfabetizado, significa que é capaz de decodificar e codificar qualquer palavra em sua língua (…). A compreensão de textos, por sua vez, consiste num ato diverso do da leitura. É o objetivo final, que depende primeiro da aprendizagem da decodificação e, posteriormente, da identificação automática de palavras e da fluência em leitura oral.”
MEC, 2019, p. 19
Na sua opinião, o que esse entendimento da leitura como decodificação, distinta da compreensão, pode implicar no ensino-aprendizagem?
AGB: Como já disse, o trabalho sistemático com a língua escrita é fundamental. É necessário, em alguns momentos, propor atividades focadas nas relações grafofonêmicas, inclusive utilizando palavras inventadas, sem sentido. Essa é uma forma boa de avaliar se as crianças estão conseguindo decodificar, mas é preciso, em outros momentos, continuar desenvolvendo práticas de leitura e escrita com sentido. Abolir tudo que é sentido não faz sentido algum.
Há muitos estudos interessantes ligados às ciências cognitivas da leitura, à linguística, psicolinguística, pedagogia. Todas as contribuições precisam ser integradas pelo professor na alfabetização. Daí a dificuldade de entender a proposta de um único método ou o foco em uma única faceta do processo.
CENPEC Educação: Pode discorrer sobre o papel da fluência na aprendizagem da leitura?
AGB: Esse é outro aspecto interessante nessa política: a ênfase na fluência e no vocabulário. Esses componentes foram deixados em segundo plano na maioria dos programas anteriores. Uma exceção é o currículo do Paic, que apresenta esses componentes.
É importante contemplar essas questões no ensino e aprendizagem da leitura, porque da decodificação é preciso passar para a leitura global das palavras. É isso que permite a rapidez na leitura, mas especialmente a compreensão do que se lê.
Quando ainda está lendo letra por letra e relacionando ao fonema, ao terminar de ler duas palavras, o aprendiz já esqueceu o sentido mais geral do texto, porque está focado na memória de curto prazo.
Na minha opinião, o aprendizado da leitura precisa de formas fixas. Para ajudar o estudante a avançar na fluência e, consequentemente, na compreensão de textos, o professor pode recorrer a uma lista de palavras que o aprendiz já sabe de cor e decodifica globalmente, como apoio para a leitura de novas palavras. Costuma-se usar os nomes próprios da turma, palavras familiares no vocabulário dos alunos, como nomes de comida, brincadeiras, personagens de histórias de que eles gostem, etc. Ao longo da aprendizagem, essa lista vai se ampliando, e o aprendiz vai criando seu dicionário mental.
O trabalho com o vocabulário é importante porque as palavras não significam sempre as mesmas coisas. É costume, entre o 5o e o 6o ano do Ensino Fundamental, a escola introduzir aos alunos um vocabulário completamente novo, com entrada de disciplinas e práticas pedagógicas diferentes. Pode-se pensar: “é natural, as crianças estão crescendo”, mas é necessário observar o caráter processual do desenvolvimento cognitivo, que tem natureza abstrata e precisa ser trabalhado sistematicamente.
Vários estudos apontam que a fluência vai sendo adquirida com a prática da leitura. Isso promove, além de tudo, que o estudante amplie a consciência sobre as unidades sintáticas que organizam o texto. Elas indicam os locais onde se fazem pausas mesmo que não estejam marcadas por vírgula ou ponto. Uma atividade específica para isso é a leitura em voz alta. Prepara-se o texto antes para ler na sala, e o professor vai registrando o tempo da leitura, assim como registra também se houver hesitação, pausas mais longas, silêncio, que indicam dificuldades na fluência.
Essas observações ajudam a diagnosticar o nível em que o aluno se encontra no aprendizado da leitura e planejar conteúdos e atividades específicas para que ele avance no domínio da leitura. Isso é muito importante: não há compreensão sem fluência.
CENPEC Educação: A nova política de alfabetização adota os termos literacia e numeracia, em lugar de letramento e numeramento, mais conhecidos no cenário educacional. Há diferenças conceituais entre esses termos? A troca de expressões pode implicar diferenças na prática de sala de aula?
AGB: Um questionamento que faço a essa política diz respeito à falta de referência a uma das maiores especialistas no tema em nosso País, Magda Soares, cujo trabalho não é levado em conta. A escolha das palavras literacia e numeracia, me parece, é apenas uma oposição a um trabalho que vem sendo feito há quase cinco décadas.
A palavra letramento foi incorporada à língua desde então para nomear a ampliação das possibilidades de leitura e escrita, a vivência de situações de letramento, necessárias para que a aprendizagem da língua escrita seja significativa às crianças.
Claudia Vóvio (Unifesp) explica o que é letramento:
Um aspecto positivo da política, por outro lado, é dar foco ao letramento – ou literacia – escolar. Isso é interessante porque prepara os alunos para as outras etapas escolares, mas é preciso fazer uma ressalva: esse letramento pode ser e deve ser estendido a gêneros variados, textos de diferentes esferas de comunicação, não apenas àqueles utilizados na escola (por exemplo, seminário, enunciado de problema matemático, texto de divulgação científica, dissertação).
O foco principal está na junção das várias modalidades de letramento – escolar e não escolares –, porque muitas crianças não leem palavras, frases, textos por não terem compreendido os usos sociais da escrita e não participarem deles. Analisando as práticas em sala de aula, vejo que os professores misturam os dois tipos de letramento.
Não é uma questão de método, mas de articular um conjunto de estratégias que partem da consciência fonológica, passam pela reflexão sobre a palavra e vão até a leitura e a produção de textos. Isso é especialmente importante para aqueles cujas famílias não têm essas práticas em seu cotidiano.
Será muito improdutivo caso a PNA se concentre apenas na faceta linguística. É importante acompanhar os próximos passos para saber como será sua implementação, observar se garantirá momentos e espaços para vivenciar outras linguagens e fazer diferentes coisas, inclusive brincar, como acontece nos Estados Unidos, na Inglaterra e em outros países em que o método fônico vigora.
Na minha visão, a grande questão é saber se e como a nova política vai considerar e articular outros campos do conhecimento, que trouxeram muitos avanços no ensino-aprendizagem da língua escrita, e outras necessidades para o desenvolvimento integral dos estudantes.
Resumindo: essa relação direta entre a redução da alfabetização a um conjunto único de elementos me parece pouco eficaz, principalmente sem um plano de implementação, que ainda não foi anunciado. Então, vamos esperar pelas próximas orientações e especificações do MEC.
#CENPECexplica: Alfabetização em foco
Magda Soares e Maria Alice Junqueira (CENPEC) comentam cartilha
da Política Nacional de Alfabetização
Liane Araújo (UFBA): fala e escrita em diálogo na alfabetização
Veja também
As linguagens da criança e o mundo letrado
Direito à cultura escrita: 10 materiais formativos sobre alfabetização
Curso Leitura Vai, Escrita Vem: práticas em sala de aula
Oficina de Alfabetização: atividades com nomes próprios e poemas
CONTEÚDOS RELACIONADOS